Textos

Teia de Livros

Um corpo se afastando de outro corpo, provoca tempestade nos sentidos.
'Fios de Agora'

Com o estômago revirado pelos outros meses, descansou o calendário em volta do pescoço.
'O Corpo das Hortênsias'

O hálito purifica a escuta na gruta da voz.
'Abajur de Cabeceira'

Criaturas são incorreções à procura de páginas.
'Fios de Agora'

O hálito purifica a escuta na gruta da voz.
'Abajur de Cabeceira'

Havia uma asa escondida no canto do olho.
'Abajur de Cabeceira'

A pele da flor nas pás reveste setembros.
'Fios de Agora'

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Extra


Maltrapilho, o brinquedo se veste do pequeno corpo.
Mãos calejadas mudam de cor nos sinaleiros.

O jornal reveste os ossos que dormem.
Gemem as letras sem notícias.

A fome desembrulha a infância diante das marquises.
Rita de Cássia Alves

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Sintonia

Palmeiras sangram o vento.

Cavalos estancam o voo, sob a moldura de dunas.

Secas no veleiro de olhos naufragados.

Pálpebras venezam gôndolas selvagens.

Duas turmalinas caem do teu sol, porque canais se estendem ao longo das costas.

Entre as bocas do rio, o amor hiberna na garganta.

Rita de Cássia Alves

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Mensagem Aos Mestres



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PRIMEIRO AFAGO


Quando pousou a ave do encantamento, a mão virou pedra.
Do que se fez luz, a escuridão rejeitou.
Mal sabia ele que amar foi um descuido.
Tentou evitar o cumprimento, negou-lhe todos os dias.
A perda é uma espécie de memória.
Sempre a intenção, menos o que doía mais.
Dois seres juntos, exilados.
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Praça de Orquídeas

 

P ARTE DE NÓS É O QUE APROXIMAMOS PELO CUIDADO.

R  ARA É A HISTÓRIA QUE SIMBOLIZA O TRATO-FLOR, ESSA

A DMIRAÇÃO NOS OLHOS DA ORQUÍDEA ENTRE FONTE, LAGO E

A Ç ÕES SUBLIMES DA PÉTALA. SOMOS O QUE PACTUAMOS
A NTES MESMO DE ESTARMOS RIO, ESSE ENGENHO A DESAGUAR E
D ESFIAR FONTES DE DESEJO A CÉU ABERTO. COLONIZAMOS A FÉ,
E NESTE MOMENTO DE CELEBRAR A NATUREZA, O SABOR E
O PASSEIO UNEM AMADORES E EXPERIENTES CAMINHOS. NOVOS
R UMOS SÃO DESCOBERTOS NO BOTÃO, NA EXPOSIÇÃO DE
Q UEM É SOLIDÁRIO E EMPREENDEDOR. GANHA JOINVILLE E QUEM SE 
UNE A ESTA CELEBRAÇÃO: NOSSO PALCO É O AROMA DAS FLORES,
Í NTIMAS CRIATURAS QUE NOS CULTIVAM! SEJAMOS A BELEZA EM
D IAS DE HOMENAGEM COMO ESTA, AO VALORIZARMOS A TERRA-MÃE!
E M MEIO AOS GESTORES, PARCEIROS DO ATO E DA ARTE, NOSSOS
A PLAUSOS À AJOS E À CASA DO CAPITÃO, EXEMPLOS VIVOS DA
SINTONIA DE QUEM VIVE A CIDADE! PARABÉNS!
Rita de Cássia Alves
R EPAREM! HÁ UMA ORQUÍDEA DESAFIANDO OS DIAS! É O FRUTO
E NTRELAÇADO COM A TERRA, ESSE FOGO
D E PÉTALAS QUE SE AQUECE DENTRO DA GENTE. HÁ
U MA URGÊNCIA DE SER CONTEMPLADO E AFAGAR O AGORA!
T ANTO SE VÊ NESTA FLOR, SIMBOLO DE CUIDADO E GUARDADOS:
O OLHAR DE QUEM PROTEGE É A CASA DA TAPEÇARIA. TECEMOS
D EDOS E FIOS NO AMADORISMO DAS HORAS. QUEREMOS QUE
E NTRE SONHOS E SABORES, A VIDA ACONTEÇA! BASTA A MÃO
O RNAMENTANDO O GESTO PARA QUE OUTRAS TERNURAS SURJAM!
R ECORDAR É RENOVAR OUTRA PAISAGEM !
Q UE O CHAMADO DAS RAÍZES ECOE SEMPRE PARA QUE ESTEJAMOS
U NOS NO MÚLTIPLO DOS DIAS. ADUBE O SOLO DOS QUE TE VEEM NO
Í NTIMO DOS INSTANTES, E AINDA ASSIM, TE
D OAM O MELHOR DE SI, QUANDO APOIADORES! QUEM DA BELEZA SE
E NFEITA, ESPIRITUALMENTE SE ELEVA, E LEVA AGENTES DO BEM
A PONTANDO OS CAMINHOS DO SUPREMO! ORQUIDÓFILOS E
S EMEADORES DO ENCANTO, ACEITEM NOSSA GRATIDÃO!
Rita de Cássia Alves

Textos produzidos e lidos em comemoração à inauguração da Praça de Orquídeas em Joinville, no sábado, dia 19/09. 








QUARTO AFAGO


Celebração. Aniversário a dois. Bem-querer redobrado.
Conheceram-se há pouco. Luz em ambos os olhos.
A noite encontra o vento. Prenúncio de praia que ela não via,
mas sabia em suas mãos arenosas.
Quando tocados, os corpos espumavam outras águas.
Reconheciam-se líquidos pelo verbo despejado.
Depois, distanciados pela química da pele, selaram o adeus.
Perder é dissolver caminhos.





SÉTIMO AFAGO


Uma porta no álbum de fotografias, duas saídas.
Passado e futuro olham o passado, desconfiados.
Rostos sem rugas e cicatrizes, apenas ensolarados.
Cada flash eterniza-se, três frestas agora.
Viagens, pátios de escolas, reunião de amigos.
Mais janelas e a mesa posta. Família em volta.
As páginas fecham-se e a vida continua lá.


RITA DE CÁSSIA ALVES
 





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*Minicontos*
**********


Duas vezes mãe, filha única. A vida é órfã.
Gilda somava alegrias. Multiplicou a perda da avó, escrevendo. Uma carta não entregue, registrou as falas da neta. Estrangeira em seu lar, voltava à fazenda. Ela não estava mais. Cuidava do avô e partiu mais cedo. Cansou de cuidar, a mãe lhe dizia. Viu os campos e se soube sem raiz pela primeira vez. Faltavam-lhe a vez, os olhares atentos da avó. Contava a ela, de olhos fechados, das viagens, dos namoros interrompidos, do voo da primeira voz. Nem um sopro, um adeus foram permitidos. O outro lado não exige passaporte. Entendeu nos soluços de dentro que a dor não possui nome.

=-=-=-=

Dois dias, sexta e sábado de escritos. Acordes de um cotidiano que aguça mentes. A literatura é um ritual de cadáveres, sem comandos no calendário. O escritor vive com a pedra bruta. Desconhece as cores dos vitrais do tempo, se sabe limbo esburacando palavras. Recebe de cima o temporal e recusa a sombra seca das próprias mãos. O delírio sai do olho e ataca sua língua. Texto simples também corta diamantes. A narrativa bruta contorna o corpo do papel, estanca as explicações. Grafite e tinta hoje casam diante da tela. Com todos, quem escreve isolado se garimpa: reluz o barulho das teclas. Gritos lá fora, um portão rangendo, agora é o leitor que rege a orquestra. Os sons de quem pensa não se desafinam, se desafiam nos roda-pés.

=-=-=-=

Algo de mulher tenta disfarçar seus andrajos. É sempre tanto para tão pouco inverno. Olhos verão. Vejo miudezas no corpo prostituído. É outro dentro que espio fora: alguém me sabe desvirginando ouvidos e boca. Dos retalhos da roupa, nos puídos do leite azedado, o que anda na fêmea virou esquinas, estacionou. Esfregam suas neuroses em sua derme fria e partem. Um repente desafia a bolsa e o dinheiro recolhido nas pregas e nos vincos. Vida amarrotada, pernas estendidas, um susto na contramão. 

 =-=-=-=
 Quando pousou a ave do encantamento, a mão virou pedra.
Do que se fez luz, a escuridão rejeitou.
Mal sabia ele que amar foi um descuido.
Tentou evitar o cumprimento, negou-lhe todos os dias.
E em vão. A perda é uma espécie de memória.
Sempre a intenção, menos o que doia mais.
Dois seres juntos, exilados

=-=-=-=




Microconto I  -  Atrasos

Personagens se amavam. Lua e outono, filme na tela. Olhos sem maturidade. Roteiro precoce para quem chegou tarde. Eva está no cinema, vem descansada. O cansaço estava na alma. Nem um bilhete avisou que seu corpo e o dele não se aconchegariam mais. Sabia da solidão, esta íntima criatura que se assemelha ao telefone que não toca. Queria ter dito a ele que estar dentro da paixão a deixava em movimento. A carne ultimou as urgências do agora e ela ri. Sentia um medo de estar com todos e ter deixado sua completude no outro. Adorava tartarugas, que sempre chegam porque tardam. O afeto deles veio numa hora desencontrada. Se tivesse de compará-lo, ele seria uma enguia. Escorreu seus guardados. Viveram pela metade. Entendeu que não aconteceu o verdadeiro encontro, já que as fugas alcançam o homem em suas conchas, covas, escritórios, camas, redes, berços. Ai daqueles que viram o rosto para ocasos e acasos amorosos, pensou. Associou o apaixonamento pelo viés de outras bocas, salivadas com o pôr-do-sol que amanhece os amantes cansados; que agasalha filhos sonolentos; que inspira poetas; que traz loucura aos que enrubescem. Gritou para dentro : - Amar é possuir um mapa desavisado entre as pernas e os pés. Tirou os sapatos. As luzes se acenderam. Já não era ela, era um manequim sem vitrina, sem atributos nem roupagem. Deixou seu amor isolado dos aplausos. Despiu-se do belo que está sempre carregado de espanto.

-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.


Microconto II  -  Contrários

Alguém pintou uma porta naquele cubículo. Das três grades, uma serrou-se ao meio. Não havia janela. Um furo no olho, muitas vias. Um pincel não seria o bastante para pintar a vida. Dois tiros, um deles se alojou no centro da testa. Pensava o homem duplamente. Massa encefálica era artigo de luxo, no lixo. Ratos faziam barulho. Um corpo que se pensa em liberdade já vive preso. Em disparada, o trinco agarrou-se a seus pés. Ficou a metade da tinta no azul do sapato que ele desenhou. A cabeça pensava quadrado. Precisava inventar uma aquarela maior que o sonho. 

-.-.-.-.-.-.-

POEMA

A literatura é um ritual de cadáveres,
sem comandos no calendário.

O escritor vive com a pedra bruta.
Desconhece as cores dos vitrais do tempo,
se sabe limbo esburacando palavras.

O delírio sai do olho.
Ataca sua língua.
Texto simples também corta diamantes.

Grafite e tinta casam diante da tela.
Quem escreve isolado se garimpa:
reluz o barulho das teclas.

Os sons de quem pensa
não se desafinam,
se desafiam nos roda-pés.


A LÁGRIMA E SUAS GANGRENAS 

O inconsciente 
é suicida. 

Nos ardis, 
tece o verbo 
na mágoa 
das costuras. 

O manto da cama 
encobre manchas 
e feridas. 

Além, os corpos rejeitam 
o calor da navalha. 

Enferrujando gumes, 
duelam o amor e seus aços. 
...

ESTUFAS PARA O AQUECIMENTO DAS PALAVRAS 

Dormem 
abrasadas 
as vogais 
e seus pilares. 

Envidraçadas, 
vulcanizam 
o sonho do homem. 

De seus cozimentos, 
o fogo lento 
vai formatando 
as sentenças. 

Cômodos são aquecidos, 

enquanto um séquito 
de verbos, substantivos 
e adjetivos retornos 

modelam na mão 
do poeta, 

os versos de uma casa 
cujas paredes sangram. 

As palavras 
angustiam-se 
nas redomas: 

somente a boca 
lhes servirá 
de ancoradouro. 

Viajantes, 
seguem profetas 
e fariseus. 

Fomentam 
discórdias 
e se redimem 
nas escolhas amorosas. 

Neutralizam 
a fé no cimento 
das pegadas, 

pois o coração 
das criaturas 

é o amálgama 
de Deus. 

Diferentes acordes 
acordam as palavras: 
o som das pás 
depois das enxurradas; 

a gota de orvalho 
na certeza do sereno; 

a caída dos frutos sazonados 
aplaudidos na presença da raiz. 

Que se aquietem 
os textos, as páginas amareladas, 
o livro aberto das heresias. 

As palavras 
despertam, 
têm fome. 
...


A SAUDADE E SEUS EMBAÇAMENTOS

“...não existe tapete que possa ocultar a sujeira da memória.” 
                                                            (Eduardo Galeano)

Nos meandros 
do entre vivido,
encobre-se

a redoma empoeirada. 

De seu interior, 
a mesa ornada
de migalhas,
não recebe convidados.

Repartem-se
a fome e a saciedade,
exaustas de brincar
pelo desejo. 

O amor é um par cerzido, 
e as meias vontades

calçam a memória.
...


INTEMPÉRIES

“Minha alma, mesmo fora 
dessa chuva, se curva
às qualidades do agora;
está lavada por dentro.”
( Rodrigo Garcia Lopes )

Quem se constrói 
numa racha de parede,
sublima as fiandeiras da alma.

Pegajosos, fios trabalham 
o quadrado de outras linhas:
raios fabricam a seda. 

Espiralada, 
a chuva abdica do céu

e desaba no rosto. 
...

ESCRITURA DAS VIAGENS NO PAPEL

As malas estão prontas.
Cabem em seus reservados, restos de um carbono indigesto.

Os invasores da escrita andam sobrecarregados de tinta. 
Querem que a palavra se encaixe em qualquer compartimento,
mas a inspiração lhes rouba a delicadeza do grafite.

A imagem almeja o sangue azul das canetas,
desvirginando papéis.
Neles, os muros e as casas assinam alguém que ama.

Em volta, o pensamento hospeda vontades: 
homem e deus nascem na estrebaria do Verbo.

Como ordenar sentenças, se o ímã do desejo aguarda bússolas? 
Os viajantes não descansam a solidão e suas pedras
à beira do caminho.

Não há poema que lhes oriente ou lhes vingue, 
porque os paradeiros do dizer vêm de molas, sem as malas.
Elas se extraviam.

O branco do olho vê os mapas da viagem. 
O texto nacarado é solidário, e o poeta,
um arrebanhador de pérolas.

A língua umedece vocábulos e pára nas esquinas. 
Saboreia a linguagem dos aventureiros que chegam
a lugar nenhum, porque vivem desgarrados de sentido.

Tenta articular o som dos pés que partem, 
mas chega a sós nas frases inacabadas.
Entre os esboços e uma janela, qualquer escrito nasce prematuro.

Criaturas são incorreções à procura de páginas.
...

O ESPÍRITO ANDA VAGAROSAMENTE 

A paixão pelas flores, plantas e animais nos devolvem à delicadeza. 
Instigam o homem com seu silêncio, frescor e companhia. 
Aromas e lealdade transitam pela alma inconstante. 
Remetem-nos para os confins do sempre. 
Objetos justificam recordações. 
Mantêm os que se afastam. 
Olhares não correspondidos, lágrimas choradas sem aviso, 
dias e noites oferecidos pelo amor e suas implosões, 
arrastam o espírito. 
O coração é lento quando se apaixona. 
Queremos o amanhã atropelado. 
O homem se encanta pelo imediato. 
A longevidade é o agora para quem arrisca. 
As tartarugas sabem da constância. 
Escondem a ousadia do caminho. 
Possuem a tristeza dos que estão sozinhos. 
A sabedoria lhes confere a timidez exposta. 
Guardam o tesouro da demora. 
Esperam o afago enquanto a carcaça se expõe ao sol. 
Sonham no mar o que desovam na terra. 
Quelônios sobrevivem porque tardam.

...

SOFÁ DE COURO

A neta tentava contornar os diferentes compromissos para sair da selva de concreto em que se aprisionava.
O Solar das Hortênsias, seu refúgio ao trancar a porta depois de dias atarefados, representava um espaço por muitos ignorado.
Mabel escrevia uma outra história e sua vida pertencia ao campo, às mãos acalentadas pela solidão de um jardim.
Lembrava agora de Tia Nininha e um sorriso melancólico disse sim à viagem há tanto planejada.
Dois filhos, duas ausências de quem esquece a mãe feito paisagem à deriva.
Sentia assim a tristeza da tia e os hiatos dos primos.
Quando chegou, sabia que ela estava lidando com os afazeres do jardim.
Aguardou o rosto e a resposta: seja bem-vinda, minha filha!
Seu corpo aguardava o cheiro da terra e guardava campos férteis.
Algo molhado teimava em cair de seus olhos, mas se conteve.
Precisava daquele lugar como quem pede abrigo, e acolhida, sabia que a tia era quem exigia guarida.
Pouco pedia, contentava-se com as breves presenças para as longas ausências que viriam depois.
- Estás mais magra, menina. Anda se alimentando bem?
- Tenho sede, tia. O saber e o sabor do que vivo matam minha fome.
- E os livros? Tens escrito muito? Presta atenção nas pausas, vives em meio às buzinas e tropeços, não esqueças do verde quando olhares.
Tia Nininha evita falar de si, se entretém com as novidades que lhe escapam do outro mundo.
Abre a janela e lembra do amado, diante do sofá de couro, sempre acarinhado pelas palavras que ela repete:
- Nada é tão grande que não possa acabar, nem a alegria e nem a tristeza. Portanto, descarregue bagagens desnecessárias: rancor, sentimento não correspondido, promessas não cumpridas, beijo roubado.
Abraço aquele corpo adivinhado por instantes que dividimos.
Esqueço da rotina que me impede de ficar aqui por mais tempo.
Sinto o cheiro do café fresquinho invadindo os pequenos cômodos da casa.
Seus abraços decoram a mesa e nos fartamos.
Peço colo.
...


SOFÁ DE COURO

A neta tentava contornar os diferentes compromissos para sair da selva de concreto em que se aprisionava.
O Solar das Hortênsias, seu refúgio ao trancar a porta depois de dias atarefados, representava um espaço por muitos ignorado.
Mabel escrevia uma outra história e sua vida pertencia ao campo, às mãos acalentadas pela solidão de um jardim.
Lembrava agora de Tia Nininha e um sorriso melancólico disse sim à viagem há tanto planejada.
Dois filhos, duas ausências de quem esquece a mãe feito paisagem à deriva.
Sentia assim a tristeza da tia e os hiatos dos primos.
Quando chegou, sabia que ela estava lidando com os afazeres do jardim.
Aguardou o rosto e a resposta: seja bem-vinda, minha filha!
Seu corpo aguardava o cheiro da terra e guardava campos férteis.
Algo molhado teimava em cair de seus olhos, mas se conteve.
Precisava daquele lugar como quem pede abrigo, e acolhida, sabia que a tia era quem exigia guarida.
Pouco pedia, contentava-se com as breves presenças para as longas ausências que viriam depois.
--Estás mais magra, menina. Anda se alimentando bem?
--Tenho sede, tia. O saber e o sabor do que vivo matam minha fome.
--E os livros? Tens escrito muito? Presta atenção nas pausas, vives em meio às buzinas e tropeços, não esqueças do verde quando olhares.
Tia Nininha evita falar de si, se entretém com as novidades que lhe escapam do outro mundo.
Abre a janela e lembra do amado, diante do sofá de couro, sempre acarinhado pelas palavras que ela repete:
--Nada é tão grande que não possa acabar, nem a alegria e nem a tristeza. Portanto, descarregue bagagens desnecessárias: rancor, sentimento não correspondido, promessas não cumpridas, beijo roubado...
Abraço aquele corpo adivinhado por instantes que dividimos.
Esqueço da rotina que me impede de ficar aqui por mais tempo.
Sinto o cheiro do café fresquinho invadindo os pequenos cômodos da casa.
Seus abraços decoram a mesa e nos fartamos.
Peço colo.
(RITA DE CÁSSIA ALVES )


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ESCRITURA DAS VIAGENS NO PAPEL

 

As malas estão prontas.
Cabem em seus reservados, restos de um carbono indigesto.

Os invasores da escrita andam sobrecarregados de tinta.
Querem que a palavra se encaixe em qualquer compartimento,
mas a inspiração lhes rouba a delicadeza do grafite.

A imagem almeja o sangue azul das canetas,
desvirginando papéis.
Neles, os muros e as casas assinam alguém que ama.

Em volta, o pensamento hospeda vontades:
homem e deus nascem na estrebaria do Verbo.

Como ordenar sentenças, se o ímã do desejo aguarda bússolas?
Os viajantes não descansam a solidão nem suas pedras
à beira do caminho.

Não há poema que lhes oriente ou lhes vingue,
porque os paradeiros do dizer vêm de molas, sem as malas.
Elas se extraviam.

O branco do olho vê os mapas da viagem.
O texto nacarado é solidário, e o poeta,
um arrebanhador de pérolas.

A língua umedece vocábulos e pára nas esquinas.
Saboreia a linguagem dos aventureiros que chegam
a lugar nenhum, porque vivem desgarrados de sentido.
Tenta articular o som dos pés que partem,
mas chega a sós nas frases inacabadas.

Entre os esboços e uma janela, qualquer escrito nasce prematuro.


Criaturas são incorreções à procura de páginas.

-.-.-.- 

SIGNOS SUSPENSOS NO TRAPÉZIO DO POEMA



 MALABARISMOS
Movimentam-se os versos na acrobacia
do papel.

Há vertigens no traçado das linhas:

cordas verticais recebem o imaginário
em desequilíbrio.

Para que as redes e o sobressalto
das palavras,

se o poeta vinga na queda
a pele com seus signos e sinais.

 
DOS RISCOS NO PICADEIRO


No canto do olho, cai o poema dilatado.

Artistas exibem folhas nacaradas.
O espetáculo converge a escrita e suas máscaras:

palhaços de celulose divertem espectadores.


AS CISMAS DA PLATÉIA


Senhoras e senhores, atentem para o silêncio
das lonas.

Toquem o chão das estrofes e descubram o barro
que lhes modela o riso.

Atentem para as cadeiras vazias:
elas se pertencem.

Despeçam-se do cenário no qual as sentenças brincaram.

Vistam-se de luzes à procura
de terrenos baldios.

Circos precisam de arredores

aonde o verbo
descanse.

.-.-.-.-.-.

 TOQUE DO ESMERIL NO POLIMENTO DOS SENTIDOS




 I

Nasce dentro deste tronco, o destro da mão que se lapida.
Ampara-se nas raízes pegajosas, drenando a seiva
do verso-toque.

Dirão que expele a pele da terra, enquanto o chão árido
abre as pernas ao ocaso.

Dedos são heras que transcendem
o dia
( amante bruto).

Suas falanges descansam sóis.

Do parto das manhãs adivinha-se o rosto dos rebentos:
polvos trazem ataduras na ponta das águas.

II

A maresia é anunciada.
Pelo nariz sangram iaras e botos, vítimas do odor das algas.


Sujeitos ao aconchego da pedra, respiram homens.

Nas profundidades, a memória é um cântico
cheirando pescoços nus à beira-mar.


III

Degustar o umbilical da boca, permite ao paladar
que se amolde e se lapide: olhos salivam sal.

Pelo sabor dos agostos, o outono lambe folhas.
Muitos não somos nós, que cuspimos a flor
antes de digerir os brotos.

Verde e azul casam línguas.

IV

Que os ruídos do desejo cessem, pois lapidar árvores
é feitura de ouvidos.

Pinturas rupestres desencadeiam a caça e os ruídos da mensagem.
Humanos também despem seus falares, quando o amor deita
à sombra e escuta.

Fomes ensaiam culturas e o nome é gravado nas resinas
de uma entrecasca surda.
Quem há de perceber sussurros quando a voz que geme
é a do vento?


V

Vinde “amantes de si mesmos” cansados de trégua
ao vazar suas retinas.
Estar em compaixão sugere dentros, sem que a pálpebra
precise de enxergamentos.

Aquele que observa a superfície, fala, ouve, saboreia e emudece
junto aos pegares do sentimento.
Desbastar as diferenças acasalam os sentidos.

Assim,

Deus afia Suas ferramentas
porque o homem desafia as lâminas quando chora.

Ilustradora: Maria Rosa de Miranda Coutinho




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